Revista É Ribatejo
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Entrevista Coronel Garcia Correia

 

ER- Nasceu em Sobral de Monte Agraço, no ano de 1939. Contudo, não é aí que passa os primeiros anos da sua vida.

GC- Os meus pais eram professores do ensino primário. No final do ano letivo, concorrem para Castelo Branco, de onde era natural a minha mãe. Só lá estão um ano. Em Álvaro (aldeia no Município de Oleiros, Distrito de Castelo Branco), que eu conheci só já depois de adulto. Tinha eu um ano de idade quando o meu pai, que era natural de Elvas, concorreu para lá. Então fomos para Elvas, e é aí que nascem os outros meus irmãos (nós somos sete). Todos nasceram em Elvas.

ER- É o segundo mais velho, dos sete.

GC- Exatamente.

ER- Ficou em Elvas, quanto tempo?

GC- Em Elvas, fiquei até aos 16 anos. Fiz o 6º ano num colégio em Elvas. O meu pai é transferido para Santarém como Adjunto do Diretor Escolar (depois passará a Diretor Escolar) e eu venho com o 6º ano feito. E tinha duas opções: ou ir para o Colégio Braamcamp Freire, onde hoje é O Mirante, ou ia para o Liceu fazer o 6º ano, porque nessa altura só se entrava no Liceu no primeiro, no terceiro, quinto ou sétimo ano; não podia, tinha de perder um ano. Arrisquei ir para o Braamcamp Freire, onde estudei. Depois fui para o Liceu Nacional de Santarém, no edifício que ainda hoje está a funcionar. Depois, concorri à Academia Militar e a Medicina, em Coimbra.

ER- Havia essa dupla hipótese…

GC- O meu pai gostaria que um dos filhos (e eu era o rapaz mais velho) fosse médico ou militar. E eu optei pela vida militar.

ER- Ficou algum médico, entre os mais novos?

GC- Sim. Tenho um irmão, 8 anos mais novo que eu, que é médico.

ER- Em Santarém?

GC- Já está reformado. Foi em vários sítios. Em Santa Maria, em Almada, e reformou-se como Diretor Clínico, em Évora.

ER- Sr. Coronel, como foram as suas memórias de infância no Alentejo? Existem imagens, cheiros, brincadeiras, das quais se recorde?

GC- As brincadeiras nessa altura, para além de estudar, quanto baste, eram “jogar à bola”. Jogar à bola e subir as muralhas da cidade, que é toda muralhada. Nós, miúdos com 14, 15 anos, subíamos e descíamos as muralhas; era uma prova de virilidade, digamos assim. E jogávamos à bola, naqueles “fossos”, à volta das muralhas. Às vezes, íamos tomar banho aos “pegos”, pequenos lagos que se formavam no Verão. A cidade era muito quente. E pouco mais se podia fazer, naquelas que eram as brincadeiras dos rapazes, há 60 ou 70 anos.

ER- Logo aí, podíamos identificar algumas pistas do que iria acontecer a seguir: as “provas de fogo” nas muralhas…

GC- A destreza física e o risco. Outra coisa que fazíamos (havia um colégio masculino e um colégio feminino) era ir para a parte do colégio feminino, ver as meninas passar. Era outra distração que havia nessa altura.

ER- Depois, ingressa no Serviço Militar.

GC- Escola do Exército, ainda. Em 57, entrei na Academia Militar, na Amadora. Os primeiros anos. Os últimos anos eram em Lisboa, na Gomes Freire, no “Paço da Rainha”. Faço aí os 4 anos de curso da Academia e depois venho para Santarém. Escolhi a Arma de Cavalaria e vim para Santarém fazer o “tirocínio”, ou seja: aprender na “prática”, aquilo que se aprendeu em “teoria”, na Academia Militar. Lá, era só teoria, não havia soldados para comandar. Era só teoria e pouca prática. O tirocínio é um ano nas escolas práticas, para aprender a comandar homens.

ER- Sr. Coronel, como funciona o “aprender a comandar”? Como é a reação dos “comandados”?

GC- Impor pelo exemplo. Fazer antes de mandar fazer. Exemplificar, não “fazer só”. Não é “mandar”, é “comandar”! Nós procurávamos fazer saltar um muro? Nós saltávamos primeiro. Saltar a vala? Nós saltávamos. Conduzir qualquer coisa. Fosse o que fosse, aquilo que aprendíamos em teoria, tínhamos que pôr em prática. E não era “mandar”, era “comandar”.

ER- Depois, há o período em que o Sr. Coronel vai para Moçambique. Recebeu uma carta, como se processou?

GC- Há uma escala para mobilização. A Guerra Colonial começou em 1961 em Angola. Começaram a ir tropas para as colónias e, no mesmo ano, eu sou Tenente e sou nomeado. Recebemos um ofício, uma carta, a dizer que fomos nomeados para comandar a “unidade tal”, numa companhia, integrada num batalhão, e era para a província (na altura, com esta designação) de Moçambique. Depois, íamos para Cavalaria 7, na Calçada da Ajuda, e aí recebíamos os homens: soldados, sargentos, oficiais, que iríamos comandar. E, com eles, tínhamos a chamada “Instrução de Aperfeiçoamento Operacional” – IAC, que era feita na unidade e no campo, o mais aproximadamente possível das ações que poderíamos vir a fazer em África: reagir ao “golpe de mão”, reagir às “emboscadas”. É evidente que tudo acontece num clima “controlado”. Totalmente diferente. Lá havia o calor, cá era inverno.

ER- Quando o Sr. Coronel recebe a carta que diz “vai para Moçambique”, qual foi a sua reação? Missão dada, missão cumprida?

GC- Sim, nessa altura, foi. O Salazar tinha dito nessa altura, quando foi a Angola: “Para Angola, rapidamente e em força.” Todos nós, de uma maneira geral, obedecíamos a essas leis. Éramos militares e devíamos obedecer ou deixar a vida militar. Nessa altura não se podia deixar a vida militar. Tinha de se cumprir. E eu cumpri. Fui para uma das piores zonas que havia em Moçambique, nessa altura. Porque tinha um pelotão, dos quatro grupos de combate que foi para “Nangololo”, perto de Miteda, que era a terra onde eu estava a servir. É aí que começa praticamente, o terrorismo em Moçambique. Com o assassinato do Padre da Missão e o “administrador do posto”. Eles são mortos pelos chamados “terroristas independentistas” que assassinam, e começa aí.

ER- Em Moçambique.

GC- Moçambique, Cabo Delgado.

ER- Na altura, como denominavam as forças rebeldes?

CG- Nós denominávamos como “terroristas”.

ER- Estavam ao serviço de algum partido, ou força política?

GC- Em Moçambique, a FRELIMO. A RENAMO só aparece depois. A FRELIMO é a “Frente de Libertação de Moçambique”. Já existia, apoiada por aqueles países independentes, que tinham obtido essa independência durante as descolonizações feitas depois da II Guerra Mundial. Os países colonizadores como a França, Bélgica, Inglaterra, começaram a descolonizar. Nós é que não, continuámos “orgulhosamente sós”. Portanto, é a FRELIMO, apoiada pela Tanzânia e por outros países limítrofes de Moçambique; que “tocam” o norte de Moçambique, a partir principalmente de uma etnia, que é a “maconde”.

ER- Ainda muito presente em Moçambique.

GC- “Maconde” é uma etnia muito forte, não só em Moçambique, como na Zambézia. No Rio Zambeze, que delimita o norte de Moçambique com a Tanzânia, encontramos “macondes” do “lado de cá” e do “lado de lá”.

Os franceses já tinham descolonizado o Congo, a Bélgica já tinha libertado ao lado do Congo, o “Congo Belga”. Se a memória não me falha, enquanto Portugal esteve 14 anos em Guerra Colonial, umas dezenas de países nasceram, com a descolonização. Não só em África, como na Ásia. Só Portugal é que não descoloniza e fica.

ER- E, naquele momento preciso, o cenário era desfavorável. Um contra (quase) todos. Há um desequilíbrio de forças.

GC- A própria ONU era contra. O próprio Papa recebeu em Roma, no Vaticano, os 3 representantes dos movimentos independentistas de Angola, Guiné e Moçambique. Isso era um sinal do próprio Papa e da ONU, de que estavam contra Portugal. Era proibido aos outros países venderem armamento a Portugal, para utilização na Guerra Colonial. Portanto, o armamento que aparecia era comprado através de outros países, porque os países da NATO estavam proibidos internacionalmente de potenciar uma guerra que era considerada injusta.

ER – Sr. Coronel, respirava-se algum clima ou cultura “derrotista”, dizendo: – “isto vai correr mal?

GC – Sim, já se sentia. Não só alguns de nós, que a pouco e pouco íamos percebendo que a guerra era uma guerra injusta e tinha de acabar, como tínhamos a parte em que os oficiais milicianos já com cursos ou “meio-cursos” tirados, em que os cursos eram interrompidos para virem para a “tropa”, para o exercito; com alguma politização, já tínhamos a consciência de que iria acabar. Por outro lado, como eu já disse, nós (as Forças Armadas) já estávamos “traumatizados” com o problema da Índia, quando em dezembro de 61, com a guerra em Angola a decorrer, a União Índiana, depois de muitos anos de tentativas, invade Goa, Damão e Diu. Ainda morrem alguns portugueses. Nós não tínhamos um avião, nem uma fragata. Tínhamos uma corveta e alguns militares mal armados. O General Vassalo e Silva, que era o comandante geral, a certa altura, passados alguns dias, rendeu-se. Salazar tinha dito: “ou mortos, ou vitoriosos”, e nós se fossemos perder a guerra em África… Uma guerra de guerrilha não se ganha, quando não se tem o apoio da população. A população estava maioritariamente do lado dos independentistas. E este trauma da Índia também estava patente em nós, acerca do que poderia vir a acontecer. Foi a Guerra Colonial que deu o passo em frente para a descolonização.

ER – Sr. Coronel, com todos os fatores a contribuírem para um clima de insatisfação, qual é o momento é que se instala o sentimento de que “algo não está bem”?

CG – Vai correndo. Vai a pouco e pouco. Muitos civis já lutavam, de várias formas, pela “independência”, pela democracia. Eram presos, eram torturados, iam para Peniche, iam para Cabo Verde. Mas com a PIDE e com a censura, tinha-se a consciência que só com uma “força” é que se conseguiria derrubar o regime ditatorial de Salazar e mais tarde, Marcelo Caetano.

E nós, Capitães, éramos na Guerra Colonial, o seu sustentáculo. Nós é que estávamos no terreno, a fazer operações. Nós, ou os Paraquedistas e os Comandos em operações especiais, em locais de maior resistência por parte das forças independentistas. Quando sai um decreto em maio de 1973, contra as regras militares, que nos ia prejudicar a nós, capitães do quadro permanente da Academia (que tínhamos 4 anos de academia, mais um de tirocínio, no total de 5 anos de curso), com uma lei, o Decreto 353/73, dizendo que os Oficiais Milicianos Capitães, que tinham 6 meses de instrução, mas tivessem uma comissão como milicianos e que fossem à Academia mais 6 meses, iam “buscar” anos à “antiguidade miliciana”. Traduzindo isto “por miúdos”, passavam à frente de todos.

ER – Claramente injusto…

CG – Injusto e contra todas as regras militares. Vamos supor que o senhor tem um emprego, e a certa altura vê entrar um que agora que fez um curso e passa-o à frente, rapidamente e em força. E nós, vimos que a consequência disto começa a “minar” a consciência dos Capitães, estes começam a falar uns com os outros, o que leva a haver reuniões em Portugal, na metrópole, e em todas as províncias. Dentro do possível, porque no mato, não se sabia sequer o que estava a acontecer. De reuniões em reuniões, clandestinas, porque a PIDE andava atrás de nós. Eu estava em Angola, só vim para Santarém em janeiro de 74.

ER – Porque o Sr. Coronel esteve em Moçambique e depois em Angola.

CG – Fiz uma comissão em Moçambique e duas em Angola, num total de três. Regressei a Santarém e aqui retomei as reuniões (clandestinas) com os que cá estavam. “ – Atenção que este decreto vai-nos prejudicar. “ As reuniões repetiam-se sucessivamente, também clandestinas, procurando fugir às atenções (nas colónias também havia PIDE). Essas reuniões foram ocorrendo aqui em Portugal – a primeira em Évora, depois há em Óbidos, Aveiras de Cima e há uma última, final, que é já em março de 74, em Cascais, que é no atelier do arquiteto Braula Reis, onde estão cerca de 180 oficiais, 111 dos quais assinam o documento político feito pelo Major Melo Antunes, que é o ideólogo político. Entre eles, estou eu. Essa reunião era considerada importante para 4 oficiais aqui da Escola: fui eu, foi o Salgueiro Maia, foi o “Palma”, que já morreu e não chegou a General. Fomos lá, viemos e trouxemos a mensagem: “- Fomos lá, assinámos este documento, o que é que vocês acham?” Todos os oficiais implicados concordaram com essa assinatura. Esse documento é importante porque traça o “Portugal, o Movimento das Forças Armadas e a Nação”.

ER – Depois, há também um golpe falhado em março…

CG – Depois em 16 de março, sai uma coluna nas Caldas da Rainha, no Regimento de Infantaria 5, intempestivamente, inglóriamente (não está ainda bem explicada a razão da sua intenção), em direção a Lisboa. Eu, que comandava o Destacamento da Escola Prática para formar o primeiro ciclo de Sargentos Milicianos, informei que não saíamos. Mais unidades foram aliciadas ou tentadas para sair. Mas simplesmente, era um sábado, um fim de semana, nada estava preparado, não havia ordem de operações nenhuma, havia apenas o “tal” documento político. Então, as unidades todas disseram que não.

Há aqui um factor que desiquilibra. Há um oficial miliciano, o Capitão Ramos, do gabinete do General Spínola, que vai para o gabinete das Caldas da Rainha, instigar para que saíssem.

ER – Isso dá que pensar…

CG – Dá que pensar.

ER – Mas é uma teoria…

CG – É um facto. As outras unidades não saem; já se tinha dito que não saíam, porque era fim de semana, porque não estavam preparados, não havia ligação nenhuma, não havia ordem de operações, e portanto ninguém saía. Mas eles resolveram sair. Quando sentiram que ninguém ia sair, dois oficiais na zona onde são as “portagens” ali de Lisboa, entre os quais o Major Monge (nr. atual Gen. Manuel Soares Monge, governador civil de Beja até 2011), que deu a ordem: – “Ninguém saiu, voltem para trás, voltem para o regimento, para as Caldas da Rainha”. O Quartel General era em Tomar e dá ordem às unidades da Região Militar, entre elas a Escola Prática, para os ir intercetar em Rio Maior. Como sabíamos que eles estavam dentro do Movimento, para desencadear também o “que veio a ser o 25 de Abril”, a coluna que foi, comandada pelo Major Sequeira da Silva e por alguns capitães, entre eles o Palma, tudo fizeram pelo caminho para não cumprir a missão: as viaturas avariavam, as viaturas atascavam uma a uma… Não chegaram a Rio Maior, chegaram às Caldas. Quando chegaram às Caldas, já estavam cercados por outras unidades, e estava lá o Brigadeiro, segundo comandante da Região Militar de Tomar, que deu ordem de prisão. Foram todos presos. Uns foram para os Ralis, outros foram para a Trafaria. Isso fez acelerar o 25 de Abril: “Temos de os tirar de lá!” Eles estavam do nosso lado. Saíram intempestivamente, porque tiveram noção que lá em cima, em Lamego, o Centro de Operações Especiais tinha saído, estava “sobre rodas”. Mas aqui nas Caldas da Rainha já tinham prendido o Comandante. – “Não podemos voltar para trás, já prendemos o Comandante!”. Nós respondemos: – “A gente não sai, não temos munições aqui na Escola!” Há esse pormenor que é importante. O paiol da Escola tinha rebentado e as munições que deveriam estar guardadas para quando fizessemos exercícios de tiro, foram para o paiol de Santa Margarida. Só vinham a pouco e pouco, quando eram necessárias para determinado exercício. Não tínhamos munições e não tínhamos carros de combate para ir a Lisboa. O Carro de Combate é muito lento para andar. Quando se preparou a coluna para ir para Lisboa na madrugada de 25 de Abril, pôs-se logo de parte levar carros de combate. Os carros de combate que aparecem com o Salgueiro Maia, são carros que vêm de Cavalaria 7, na Calçada da Ajuda, descem a Calçada da Ajuda e estava combinado com oficiais que eram da Escola e que tinham ido para a Cavalaria 7 *, que virassem para o Terreiro do Paço e não para Cascais, como estava previsto. Como estavam lá oficiais que eram do “nosso lado”, o Brigadeiro do Comando da Região Militar de Lisboa dá ordem ao Alferes que mando esse pelotão de carros de combate para fazer fogo. E ele não faz. Diz que não cumpre a missão. Depois dá ordem ao Cabo Atirador que puxaria o gatilho, além do Alferes que tinha saído do carro, que fechou a cúpula e também não fez fogo. Se se “abre fogo” poderiam morrer muitos militares e civis que estavam a vir do outro lado do Tejo para vir trabalhar, a desembarcar no momento no Terreiro do Paço.

As reuniões continuaram e chegou-se à conclusão que iria ser no dia 25 de Abril. Há documento do Melo Antunes, que é um programa político. Depois, há uma ordem de operações que é feita não só pelo Otelo Saraiva de Carvalho, que chega a Santarém no dia 23 de Abril. Há um oficial encarregado da ligação que vai dizer ao Salgueiro Maia: – “Já está na Pastelaria Bijou (junto à Sé), um oficial que vem de Lisboa com a ordem de operações. Então o Salgueiro Maia vai lá (que era o combinado entre nós), ele vai buscar a ordem de operações e o anexo de transmições que era importante por causa da ligação, para a missão dada à Escola. A missão dada à Escola, para a qual o Salgueiro Maia já estava coordenado connosco, porque é ele que vai comandar a coluna, porque a maioria do pessoal que vai com ele, é pessoal que está sobre o comando dele eram instruendos do Curso de Oficiais Milicianos. Já homens com “quase licenciaturas”, que foram para a tropa com alguma literacia, com alguns conhecimentos. Não era qualquer “soldado base”, que tem a 4ª classe. Portanto, o Salgueiro Maia recebe a ordem de operações e depois reunimo-nos para saber o que é que se ia fazer. Nós já sabíamos qual era a missão e que o “Maia” iria cumprir, não sabendo totalmente com quem. O Comandante, que era o Coronel Laje (este papel também é importante), no dia 24 de Abril vai para Lisboa, para uma consulta externa. Fica só na Escola, o Segundo Comandante, o Ten. Coronel Souto, que era do Porto, e fica no quartel. Os outro dois majores que estavam na escola, viviam em Santarém e tinham casa própria. Portanto, aquele senhor é que tinha de ser retirado da Escola, para se movimentarem com mais facilidade, facilitando toda a organização logística e não só, para sair.

Entretanto, já se sabiam quais eram os sinais, que eram o “Depois do Adeus” e o “Grândola Vila Morena”.

O Segundo Comandante sou eu que o convido para ir a minha casa jantar, para eles estarem na Escola à vontade a fazer os preparativos para a saída. Cerca das 23h30, ou meia-noite, quando há o 1º sinal e o Paulo de Carvalho canta o “Depois do Adeus”…

ER– Você ouviu isso em casa, durante o jantar?

CG- Eu não ouvi, estava com o senhor, não ouvi. Telefonam para minha casam, para o fixo. A mulher atende e diz:

– “(…) O senhor está mal, parece que não quer aderir, o meu marido já falou com ele.”

Respondem da Escola Prática de Cavalaria: – “Já deu o sinal do “Depois do Adeus”, o melhor é ele vir para cá! Trá-lo!”

Voluntariei-me para levar o senhor. Quando se abre o portão pequeno da Porta de Armas, entro eu e ele, está o oficial de Dia e é o Sargento de Guarda que abre a porta. Está também o (na altura) Capitão Correia Bernardo. Ele entra e vê que não era o Oficial de Dia que estava escalado, que se tinha apresentado ao Segundo Comandante, depois do render da parada. Este confronta-o:

“Você não é o Oficial de Dia, não foi o que se me apresentou.”

– “Não.”

– “Então, porque é que tem o braçal?

– “Foi o nosso Capitão Correia Bernardo que mo pôs, eu não tiro o braçal.”

– “Mas o que é que se passa aqui?

Aí eu digo: – “Meu Comandante, aquilo que eu lhe disse em casa, é hoje.”

“É hoje? Todos ao meu gabinete!”

Eu vou com ele para cima, o Capitão Correia Bernardo vai à Sala de Oficiais chamar os outros Oficiais que estavam por lá.

Quando se confronta com duas dezenas de Oficiais, ele fica espantado e pergunta: – “Mas o que é isto?”

Eu repeti: – “Aquilo que eu lhe disse em casa, da Ordem de Operações, que ia acontecer, para derrubar o governo, é hoje.”

“Vou telefonar ao Quartel General, para Tomar!”

A central telefónica estava sobre o nosso poder, e o Capitão Correia Bernardo que estava ao lado, responde:

“O senhor não telefona nada, a Central já não “liga”.

Passados dois ou três minutos, confronta o “Maia”:

“Isto é uma gaiatice, vocês não vão a lado nenhum, isto não acontece.”

O “Maia” sai e eu fico com o senhor, a conversar com ele.

ER- O “Maia” sai para Lisboa?

GC- O “Maia” sai para a parada, manda “tocar a formar”; uns sabiam, outros não, forma tudo, e é aí que ele tem aquela frase:

“Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que isto chegou. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos. Quem quiser vir a Lisboa, vamos derrubar o governo. Estamos preparados para isso. Quem quiser ficar, fica. Quem não quiser, vai-se embora.”

Ninguém saiu. E ele então teve de escolher os homens que iriam, que caberiam nas viaturas que iria levar para Lisboa, enquanto os outros ficaram. Então à volta das 3 da manhã, a coluna do Salgueiro Maia sai do Quartel.

O senhor, o Segundo Comandante está no gabinete, com duas janelas que dão para a parada. Então pergunta-me:

“Então sempre é verdade?”

“Eu disse-lhe. Em outras unidades do país, também está tudo preparado. Não é só a “Escola”. A Escola tem uma missão, as outras unidades têm outras, e o nosso objetivo é derrubar o governo, acabar com a Guerra Colonial e acabar com isto tudo”.

Daí a uns minutos, este pergunta: –“Então, eu estou preso?”

“Não está preso. Está sem funções. Quer ficar com funções, assume a responsabilidade do que vamos fazer.

“Não. Posso ir para o meu quarto?”

Foi para o quarto. Lá havia um telefone, mas estava desativado. No outro dia de manhã, vêm dois Majores a Santarém, vêm à porta de armas, queriam falar com ele, perguntando onde é que estava: -“Ele está preso?”

-“Não, não está preso, está no quarto. Não querem entrar?”

-“Não, não.

Fomos buscá-lo ao quarto, lá “conferenciaram” e perguntou se podia sair.

– “Pode.”

Foi preparar as coisas deles, as “vestimentas”, meti-o num jipe e fui levá-lo a casa de um dos Majores, de onde sairam para se apresentarem no Quartel General, em Tomar. A verdade é que continuaram no serviço ativo.

ER- Engraçado, Sr. Coronel, é que até aqui em Santarém, as ações foram pacíficas, ou seja, não houve uma ordem de prisão sequer.

GC- Dentro do quartel, foi completamente pacífico. Depois, como tinha havido um insucesso nas Caldas da Rainha, onde alguns voltaram para trás e foram presos, nós tivemos esse “ensinamento”: o que havia acontecido, poderia acontecer agora ao “Maia”, que ao tentar derrubar o governo, tivesse um insucesso. Nessa altura, eu e o Capitão Correia Bernardo andámos pela cidade, num fim de semana (nr. depois do 16 de março) pelo planalto da cidade, com os “restantes” que não foram para Lisboa, colocá-los nas possíveis entradas: ou pela ponte D. Luís, no cemitério, na “entrada do Cartaxo”, nas Portas do Sol, atrás do Liceu, onde é o Hotel hoje… em tudo o que eram pontos estratégicos. Na esperança de que outras unidades que estavam afetas a derrubar o governo também acorressem para manter firme a nossa intenção. As coisas, como sabe, correram de feição. O “Maia”, no Terreiro do Paço, ainda tem uma situação em que o Brigadeiro, que era Segundo Comandante da Região Militar de Lisboa manda fazer fogo à sua coluna. O “Maia” vai tentar falar com ele, leva uma granada de mão, que seria accionada se fosse preso.

Havia o Brigadeiro e havia o Tenente-Coronel que era o comandante das forças de Cavalaria 7, dos Carros de Combate, que acabou por se entregar. Foi preso, foi detido, mais o Major. A situação no Terreiro do Paço “resolve-se”. Prosseguiu a missão, na tentativa de ocupar os ministérios, o Banco de Portugal. Aquilo resolve-se, porque os ministros fogem por um “buraco” que fizeram para o lado da Marinha, pela Rua do Arsenal, o resto estava tudo sossegado. Da pontinha, onde estava o Comando de Operações, onde estava o Otelo Saraiva de Carvalho, o Tenente-Coronel de Engenharia de Transmissões Garcia dos Santos, que faz uma ligação através de uma linha que estava a ser montada, do Colégio Militar até à Pontinha, ao Comando. É por aí que dá a ordem ao Salgueiro Maia que, uma vez que está resolvido o problema no Terreiro do Paço, marcha para o Carmo, onde está o Marcelo Caetano.

ER- Falando em Terreiro do Paço, ao largo, está uma embarcação…

GC- Sim, está uma fragata que estaria prepara para, já no mar, para exercícios da NATO que é mandada subir o Tejo e ir ali para atacar as “forças rebeldes” da Escola Prática de Cavalaria. Mas não aconteceu, porque parece que há um oficial de Marinha que consegue falar com o Comandante Naval, o Almirante, Chefe do Estado Maior, que não fizesse aquilo porque não valia a pena. Não só mataria muita gente, como não valia a pena. A fragata recebe então uma ordem para descer o Tejo e voltar para o mar, e foi-se embora sem problemas.

ER- E mataria realmente muita gente, porque estava lá o “povo” …

GC- Sim. Mas também estaria afundada. Porque há uma bateria de artilharia de Vendas Novas, que está no Cristo Rei, com elementos já introduzidos para que a granada caia naquele sítio.

ER- Incrível.

GC- A fragata foi-se embora e deixa de necessário fazer fogo de artilharia, que estava no Cristo Rei a apontar para o Tejo. E essa fragata vai-se embora. Essa fragata é comandada pelo Sr., na altura Capitão de Mar e Guerra, chamado Louçã. Segundo dizem, tio do Louça do Bloco de Esquerda, o político. A fragata desapareceu, foi-se embora. O Maia recebe ordem para ir para o Carmo e os “tais” carros de combate que ele leva já para o Largo do Carmo.

O “Maia” dá o tiro de aviso, ele (Marcelo Caetano) não se rende. Pede a um Major da Guarda Republicana para ir falar com o Marcelo Caetano. Este diz que sim, ele vai lá. O Marcelo não se rende. Não entrega o poder a um capitão. E é contatado entretanto o General Spínola, que se presta… Foi busca-lo a casa e, quando chegam, ele foi lá e recebeu o governo do país. O Marcelo Caetano e dois ministros que lá estavam são “metidos” numa chaimite que recua até à entrada e é levada para a Pontinha. Da Pontinha para a Madeira, e da Madeira para o Brasil.

Portanto, ganhámos.

ER- E o interessante é que tratamos de uma operação praticamente “invisível” …

GC- Exatamente. Tudo se passa de acordo com o desenrolar das circunstâncias. Uma revolução não se treina. Executa-se. E â medida dos acontecimentos, há que tomar decisões de acordo com o que está a acontecer. Pressupunha-se que Marcelo Caetano estivesse em Monsanto, num bunker que havia ali, porque quando foi o 16 de março, ele foi para lá. Daquela vez ele não quis, foi-se meter no Comando Geral da GNR, no Largo do Carmo. É quando o comando da Pontinha, dos “revoltosos”, manda o Salgueiro Maia, com o seu potencial de tiro e de carros.

ER- Neste momento, está o Sr. Coronel ainda em Santarém, só a receber as informações por rádio, ou telefone?

GC- Estávamos na expectativa. Não tínhamos ligação com eles diretamente…

ER- Uma expetativa em que o tempo quase que congela.

GC- Eram momentos de aflição. O que é que vai acontecer? Vamos ser presos? Vai cair? O que é que vai ser o governo? Somos nós que caímos?

ER- Porque a “não informação” é uma coisa assustadora…

GC- Recorde-se que só havia telefones fixos. Mas os militares lá, não tinham telefones fixos. Tinham “rádios militares”, que tinham curto alcance. Não ligavam cá para Santarém. Não há telefones, não há telemóveis, não há redes sociais, não nada dessas coisas. Havia esses telefones fixos para se saber alguma coisa. Por exemplo: na noite de 23 para 24, antes do “Maia” sair, é um irmão meu, que é advogado, que eu sabia que era do “contra”, que nós lhe pedimos para andar na sua viatura num percurso pelos quarteis, para ver se havia algum movimento de saída, de entrada, alguma coisa. Ele vai a casas de amigos, bater à porta, ou até ao escritório onde era advogado, telefonar para minha casa, a minha mulher depois passava-nos a mensagem, para informar se estava tudo bem, “(…) tudo sossegado, não há movimento de polícia (…)”. Ele andava nos Ralis, no Quartel-General da Região Militar de Lisboa, onde é agora o El Corte Inglés e a Gulbenkian. Que depois é assaltado e ocupado pelo Major Fontão.

E isto do 25 de Abril acaba por ser, para nós, um sucesso e um alívio.

ER- Quando é que, em Santarém, recebem a notícia de que o golpe “vingou”? Foi na televisão, no rádio?

GC- Não lhe sei dizer. Não me lembro. Sei que soubemos, demos gritos de alegria, celebrámos, – “o governo caiu”, o “Maia” vai para a academia militar num carro, depois é recebido em euforia pelas forças aqui de Santarém, as pessoas aqui de Santarém sabem, a polícia não se meteu, a Guarda Republicana não se meteu…

ER- Depois há uma receção popular aqui em Santarém?

GC- Há, grande. Há fotografias disso. Julgo que vai haver uma exposição no Museu Municipal (terá outro nome), em que se vê perfeitamente uma multidão, a população de Santarém, a encher aquele largo até à Escola e depois o “Maia” também vai à Câmara Municipal. Há uma fotografia em que ele está na varanda da Câmara Municipal e o Povo a bater palmas e dar gritos de alegria, porque caiu o governo.

ER- No Pós 25 de Abril, é aí que desenvolve os seus estudos no Instituto de Altos Estudos Militares?

GC- Não. Nessa altura, sou capitão. Sou “capitão velho”. Sou o mais antigo. Já tenho 7, 8 anos de capitão. Tenho 3 comissões. Depois de 3 ou 4 anos, sou promovido a Major, depois vou para os Açores, mandaram-me para lá a mim, ao “Maia” e a outro capitão aqui da Escola.

Até chegar a Coronel, tive várias “situações”. Estive na Guarda Republicana, no Comando Geral, estive a comandar Carros de Combate em Santa Margarida, fui Comandante do corpo de alunos da Academia Militar, comandei a Brigada Territorial da GNR em Évora, só depois sou promovido a Coronel.

Quando estou já Coronel, fui nomeado para o Curso. Já tinha feito o Curso do Estado Maior, em Major. Fui depois nomeado para o Curso Superior de Comando e Direção, que é o curso que dá acesso à promoção a General. Fui promovido, fiquei Coronel Tirocinado, com uma “estrelinha”, mas não fui promovido a General. E é nessa altura que passo à reserva.

ER- Essa passagem acontece em que ano?

GC- 1985. Já tinha os anos de serviço. As situações em que estive no ultramar, nas colónias, contavam a dobrar. A maior parte do tempo contava a dobrar. Somando tudo, eu tinha os anos de serviço suficientes para passar à reserva. Quando passaram à minha frente, para promover outro que era mais moderno, também não gostei. Pedi para passar à reserva, sem ficar ao serviço. Vim-me embora.

Vim aqui para Santarém, estive na Proteção Civil. Um general que eu conhecia convidou-me para Delegado Regional da Proteção Civil. Estive lá dois anos.

ER- Depois ainda passa pela Santa Casa da Misericórdia…

GC- Convidaram-me para encabeçar uma lista para concorrer a provedor da Misericórdia de Santarém, onde estive 3 mandatos. De 2001 a 2010. Depois fui Presidente da Assembleia Geral da Misericórdia, 3 anos, e em 2013, sou um cidadão comum aqui da cidade, com os amigos, os conhecidos, vou à pesca de vez em quando, vou a almoços e jantares, passeio, tenho os meus netos…

ER- Tem uma vida bem cheia…

GC- Depois há a passagem a Coronel, na Guarda Republicana, em Évora, a comandar o Alentejo e o Algarve, quatro distritos: Portalegre, Évora, Beja e Faro. 2000 e tal homens sob o meu comando, na Guarda Republicana. Depois tive essa experiência nos Açores.

ER- Sr. Coronel, para fecharmos a entrevista, qual o balanço que faz desta “empresa”? Valeu a pena?

GC- Valeu. O mundo está completamente diferente. Portugal está completamente diferente do que era antes do 25 de Abril: um Portugal cinzento, com a censura, com a Pide, não se podia fazer greve, não se podia falar, não se podiam fazer ajuntamentos. Ficou muita coisa por fazer. Havia 3 D’s: “Democratizar, Descolonizar e Desenvolver”. O Desenvolver é que tem sido marcante: a iliteracia que havia, mudou completamente. As pessoas começaram a estudar, a sair do campo, por isso é que a zona litoral está mais cheia de pessoas, para procurarem melhores empregos. Ficaram lá os avós, e o resto foi morrendo. E as casas ficaram desocupadas, praticamente. Tudo procurou os centros urbanos, principalmente o litoral, para encontrarem melhores condições de vida.

(*o Movimento das Caldas da Rainha faz com que o governo faça uma rotação no movimento dos oficiais e estes saiam de um lado para o outro, para desmembrar um possível movimento).

João Rosa Luz

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